CORPOS, FLUIDOS E TABUS: MULHERES SUBVERSIVAS NAS ARTES

Por @ane.valls

Que estéticas podem fazer explodir um novo universo de códigos, permitindo que se faça vazar todos os discursos de contenção sobre a mulher? Como se representam temas que tratem sobre a mulher sob outros parâmetros que não sejam os hegemônicos?


No campo das artes, representações feitas por elas mesmas permitem que se compreendam questões feministas legítimas, pois partem da origem genuína que vive e experiencia múltiplas realidades. Ao tomar posse do seus próprios corpos e reverter a condição de ser o “outro” (quando comparadas com o homem) as produções artísticas se afirmam como estético-políticas; elas mobilizam forças e redes ao criar novos formatos e conteúdos para o cânone artístico.

 

Entre as décadas de 70’ e 80’, na segunda onda feminista, houve uma série de performances cuja estética fundamentou-se no uso dos fluidos corporais como matéria e principal elemento da obra de arte. A fim de investigar e desmoldar discursos pré estabelecidos, essas criações se debruçavam sobre as potências do corpo, seus enigmas, mistérios, processos internos. Neste período, muitas artistas mulheres queriam falar precisamente deste escapamento do corpo, de obras que convergiam para frestas e fissuras que deixavam vazar outros discursos, representatividades e simbologias em torno de um grande tabu: o sangue menstrual.


O sangue menstrual, normalmente, permanece em um jogo ambíguo e confuso: ele é ao mesmo tempo ausência e presença da realidade feminina. Ausência quando se afirma a ideia antiga de que deve ser escondido, apoiado em toda uma maquinaria industrial e midiática que demanda por produtos e ideologias que fazem ou prometem fazê-lo desaparecer ou ser higienizado. Ao mesmo tempo, a menstruação é uma realidade na grande maioria da vida das mulheres. É uma questão que atinge mais da metade da população do mundo, íntima e diretamente. De modo geral, a atenção dada às representações do ciclo menstrual levam às mulheres a internalizar mensagens destrutivas sobre a feminilidade, incluindo noções de corpos como bagunça, coisas indisciplinadas (sim, coisas) que precisam ser arrumadas, ou ainda corpos que precisam ser medicados, depilados, alisados e
aparados.

 

Recentemente, o surgimento das mandalas lunares se dispersou no mundo feminino, como uma ferramenta de autoconhecimento para mulheres se conectarem consigo e com a natureza, com seus processos internos e psíquicos. O protagonismo dos ciclos menstruais, dos movimentos internos e dos fluidos torna possível que eles sejam assumidos como naturais e vitais. E isso é de uma importância enorme, que envolve consciência, reflexão e principalmente conhecimento sobre o assunto!


Judy Chicago, Carolee Schneemann, Sophie Rivera, Ana Mendieta, Maria Marmolejo, Ilse Fusková, Cecília Vicuña, Carina Úbeda, Ex miss Febem, e tantas outras artistas norte e latino-americanas capturaram novos modos de existir e deixar seus corpos vazarem. As imagens que as performances artísticas evocaram ou produziram deslocam o corpo das mulheres para além de meros objetos sexuais, revertem esse olhar pornográfico tão estigmatizado, colapsam discursos e criticam significados. (Que sangue que tem poder!)

 

O fluxo da crueza do fluido corporal dos ciclos femininos me parece carregar consigo a potência disruptiva que explode em um novo universo de códigos, permitindo que se faça vazar discursos de contenção, ampliando os limites do corpo feminino e suas intimidades. Recuperar o olhar feminino sobre o corpo e tudo aquilo que lhe compõem é tarefa fundamental – sobretudo internamente e que de tantas formas é repugnado. São estes trabalhos (também artísticos) que disparam identidades sexuais outras que redefinem caminhos e fronteiras dinâmicas para os códigos da menstruação e seus tabus.

 

A Anelise Valls é porto-alegrense, sagitariana, dona de um casal de gatos, doutoranda em Artes Visuais na UFRGS e se dedica a estudar temas sobre arte contemporânea e feminismos. Coordena grupos de estudos sobre Feminismos e História da Arte. É professora de História da Arte no Atelier Livre e coordenadora educativa na Casa Baka.

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