O invisível e o visível em tempos de covid-19.
Por @ane.valls
Começamos, eu e Henrique, um exercício de escrita com envio de cartas que contam sobre nós, sobre nossos dias, impressões e o que mais a gente quiser. Não é bem um diário, mas emula um certo tipo de registro do que estamos vivendo nesses dias de isolamento. Essas cartas não vão via sistema tradicional de Correios, chegam por caixa de mensagem no celular, como uma pepita de ouro no meio do lamaçal de mensagens que recebemos diariamente. Resolvi estender nosso dinamismo para este texto, porque me parece que esse período - mais do que qualquer outro - ganha potência em cooperações e parcerias.
Logo, este texto é a quatro mãos, bem lavadas dia após dia.
A pandemia acabou. A cura foi encontrada. Não há mais necessidade de isolamento físico e social. O que você lembra rapidamente deste tempo? É da ordem do material ou do imaterial? O que resta quando se deseja que mais nada disto reste?
Ok. Este momento ainda não chegou, porém, atente-se à projeção que essas perguntas acima sugerem. Elas podem jogar luz no presente e disparar centelhas para um futuro próximo...
Parece haver uma distinção, muito sutil e muito enfática, ao mesmo tempo, que rege uma dinâmica entre o que é visível e invisível nesta pandemia.
O mais premente talvez sejam sentimentos e emoções que provamos a cada dia, que não estão diante dos olhos e, no entanto, nos identificamos de uma maneira ou de outra: raiva, confusão, tristeza, culpa, solidão, ansiedade, alegria, bem-estar, amorosidade, etc. O período de quarentena, subsiste sob inúmeras circunstâncias: aconchegados entre muros privilegiados fazendo da casa um casulo, uma ilha, um templo; angustiados com medidas desumanas instauradas no cenário brasileiro; nervosos com o resultado de um diagnóstico que pode ser sentença de morte; inquietos pensando nas possíveis maneiras de conseguir dinheiro, ou formatos vários que podem se mapear por aí. Em quaisquer dos cenários dessa conjuntura incerta, uma certeza há: ficamos ansiosos e inseguros.
Subitamente, e com todo o impacto que sabemos, as pessoas e os locais que amamos estão fora do campo de visão. O vírus igualmente, é invisível, mas está vivo, nos ameaça. Não tem uma bomba caindo lá fora que nos forçaria a entender que sair de casa é um risco, que mostraria a magnitude do caos. É o poder da invisibilidade de um vírus que silenciosamente nos deixa nas janelas, entendendo que o tempo ganha outro peso, que os sons ao redor são outros, que os outros também são um pouco do que somos. Com a solidão podemos perceber a importância do outro e a necessidade do coletivo. O outro influencia na construção individual e está presente nela. O que foge do reconhecimento da retina é menosprezado, mas a ordem do imaterial tem concretude e nos atravessa dia e noite.
O invisível é o calor do sol em nossa pele, o sabor do feijão, o cheiro do café, o toque do pijama. É a trilha sonora do nosso dia-a-dia que muitas vezes não paramos para perceber, mas está lá. Sempre esteve. Entretanto, este território é mais complexo de habitar e até desordenado. Não é a toa que o invisível já foi tema de filme de terror: o fazemos nosso inimigo. Como algo que nos escapa à visão pode nos afetar tanto? Somos confrontados com esse invisível que entra sem pedir licença, não limpa os pés, abre a porta da geladeira e pega o que quer. Nos escondemos ou lhe oferecemos um cafezinho?
Nesses tempos, o visível tornou-se o menos óbvio: somos nós mesmos a nos olhar. Entregues a nós mesmos, num ritmo peculiar de segunda-terça-quarta-quinta-sexta nossas quinquilharias internas e externas estão à mostra, empoeiradas ou com verniz fresco. Propagamos a pouca luz existente e tiramos das sombras o que estava esquecido ou abandonado. Observamos a arquitetura do corpo, a qualidade do traço das nossas raízes e as cores presentes no cotidiano. A vida miúda ganha uma lupa para entendermos o que significa estar conosco, estar em família e, o mais importante, como está o nosso coletivo?
Desacelerar nos faz mirar atentos para fora de nossas janelas, escutar os ruídos vizinhos. A pandemia nos permite um tempo raro de possibilidade de ter comportamentos comprometidos com aquilo que realmente importa. Quais são as formas simples de autocuidado e cuidado com os outros em casa que podemos exercer? Como propagar os saberes do corpo-bicho, os saberes do vivo? Temos a oportunidade de articular as diferenças e multiplicar as liberdades, somos condutores de uma pulsão de vida que ressoa em nosso entorno. Que tipo de comportamento de apoio a gente pode ter que melhore nossa vida e de nossa comunidade?
É impossível se ausentar do mundo para vê-lo.
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A Anelise Valls é porto-alegrense, sagitariana, dona de um casal de gatos, doutoranda em Artes Visuais na UFRGS e se dedica a estudar temas sobre arte contemporânea e feminismos. Coordena grupos de estudos sobre Feminismos e História da Arte. É professora de História da Arte no Atelier Livre e coordenadora educativa na Casa Baka.
Henrique Bitelo é músico e psicólogo. Produz documentários, vídeo-colagens e tenta, em meio a devaneios, pensar e produzir com a vida.
As imagens que ilustram o texto, foram extraídas do vídeo abaixo, realizado pelo Henrique.
https://www.youtube.com/watch?v=NjWFSfPvrd4